Mount Victoria – Wellington, Abril 2020
Era naquelas manhãs de verão, em que o sol despertava e os galos na capoeira da vizinha davam a alvorada, já é hora! Era naquelas manhãs de verão que, antes de qualquer coisa, o avô acordava-nos cedinho com o bater da porta para ir alimentar os animais. Cochilava na cama, naqueles lençóis floridos cor-de-rosa velho e com cheiro a sabão azul, só mais um minuto, até ouvir a avó deitar o café negro num fervedor de ir ao lume.
O cheiro ao café da avó fazia-me finalmente levantar. Descia as escadas em alvoroço, e lá estava ela, a sorrir com um bom dia, como te amo, no rosto. Abraçava-a. Beijava-a. E não descolava até ela dizer, vai-te vestir, o avô já está pronto para irmos.
Enquanto a avó preparava o café migado para eles, que ainda hoje se mantém a mesma dose de café negro, leite aquecido, duas colheres de açúcar e metade de uma carcaça dura, eu lambuzava-me com pão de quartos com queijo de ovelha. E claro, café negro da avó feito na noite anterior na chaleira que nunca é esfregada para não perder o sabor ao café, sabor esse construído anos a fio.
Era naquelas manhãs de verão que subia para a carripana do avô e, ainda em lusco-fusco, dirigíamos até ao rio. Inicialmente uma carrinha azul, tinta já descascada com a erosão do tempo, que a memória já quase não guarda imagem. Depois, uma carripana de caixa aberta, vermelho sangue-escuro, que dura até hoje. A carrinha que conduzi pela primeira vez, nos meus 16 anos. Nunca atinei com aquelas mudanças a ranger ou a embraiagem que pressionávamos até ao fim do mundo.
Era naquelas manhãs de verão que, vestida com roupa velha do campo, seguia as pisadas do avô na terra, para não pisar as couves plantadas pela Lua Nova ou destruir os regos cuidadosamente feitos nos dias passados. A primeira coisa a fazer mal chegávamos ao lodeiro era apreciar a paisagem. Caminhávamos por entre as colheitas para vermos se tínhamos tido visitas noturnas dos lobos. Tudo certo. Seguia-se o motor. Trin-trin-tin-tin-tin! Três vezes. Às vezes ia à quarta tentativa. Mas lá ia. O chilrear dos pássaros era música para os nossos ouvidos. Ainda com remela mal tirada, coçava os olhos, como quem belisca a pele, a admirar a natureza que me circundava. Os pinheiros altos e esguios, o rio Zêzere a correr compassivamente, os pássaros a voar de árvore em árvore, as folhagens na estrada de terra, o calor a apertar às nove da manhã.
Era naquelas manhãs de verão que, lá para as nove e meia, já com o avô a trocar de camisa duas ou três vezes, parávamos para comer o castroute. Ditava o costume, bolinhos secos, e pão com queijo e marmelada dura, como eu gosto, de partir com a faca. Outra vezes, tínhamos omelete de chouriço, quando havia tempo de manhã para capricharmos na preparação do farnel.
Era naquelas manhãs de verão que, já impaciente com o calor, a avó fazia caminhadas nos campos comigo enquanto o avô orientava as regas. Como curiosa que sempre fui, puxava pela memória da avó e punha-a a contar-me histórias dos vizinhos, das décadas passadas, da vida no campo e da padaria que tinha em outros tempos de vida. Nunca soube quem eram os vizinhos, ou as Ti Marias e os Zés todos que ela falava, mas abanava sempre a cabeça que sim. A magia de a ouvir falar de outros tempos sempre me fez feliz. Imaginei-a vezes sem conta nos seus vinte e poucos anos, a casar-se com o meu avô. Ambos esbeltos e envergonhados, pelo que reparava nas raras fotografias a dois que têm espalhadas pela casa. Assim passávamos o tempo enquanto o avô terminava os seus afazeres. Quando o sol já se fazia sentir na pele, e a regas já estavam feitas, lá tínhamos o avô a dizer alto, psit, vamos embora! Virávamos costas ao passeio e preparávamos tudo para regressar a casa. O dia estava feito e ainda só eram 11 da manhã.
Enquanto o avô conduzia, olhava-lhe para as mãos grossas e cheias de cortes. Sempre me perguntei como ele conseguia pegar no volante, nos talheres ou na enxada sem lhe causar dor. Os anos de vida no campo deram-lhe calejo, presumo. Nunca ligávamos a rádio na carrinha. Íamos em silêncio até casa. Às vezes, lá na minha ingenuidade e curiosidade instantânea, fazia perguntas sobre este ou aquele com quem nos cruzávamos. Ele levantava a mão bem alto, bom dia! Doces tempos em que ainda se cumprimentavam as pessoas na rua sem virar a cara.
Era naquelas manhãs de verão que eu era feliz e talvez soubesse disso. Hoje, tenho a certeza que foi naquelas manhãs de verão que passei os melhores dias da minha infância e adolescência. Com os pais da minha mãe e, por isso, meus pais também. Guardo estas manhãs de verão com a maior ternura e saudosismo. Eu, que nunca quererei recuar no tempo, porque passado, passado é, talvez um dia darei tudo para reviver estes tempos de descoberta.
Foram estes anos de infância que alimentaram o amor que tenho pela natureza. Depois de uma adolescência irreverente a querer ir para a cidade, a querer romper com tudo o que tinha até então, pois lá eu era menina do campo! Hoje sinto uma necessidade transcendente de estar perto da natureza. Respirá-la. Abraçá-la. Agradecer a esta Mãe que todos temos e que precisamos de respeitar mais do que tudo. Ela dá-nos vida! É nela que me encontro a mim. É nela que respiro a minha alma. É embrenhada nela que os minutos deixam de ter tempo, e as horas compasso. Afortunada sou por ter tido quem, indiretamente, me mostrasse que a vida no campo é uma das mais difíceis e belas artes. Afortunada sou por ter tido quem, diretamente, me mostrasse que tudo o que damos à Natureza ela nos dá em dobro ou triplo. Bom ou mau. Assim funciona o ecossistema.
Obrigada avó e avô. Obrigada por todas as histórias contadas e re-contadas vezes infindáveis. Obrigada por todo o amor. Obrigada por todas as lições. Obrigada por todo o tempo vivido que me fica gravado na memória.
Agora, avó, canta-me só mais uma vez a história da velhinha. Qual filhinha? Aquela canção do era uma vez uma velhinha, já velha coitadinha, já mal podia andar…